quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Drummond sobre Chico Buarque - no livro de Wagner Homem '

O jeito, no momento, é ver a banda passar, cantando coisas de amor. Pois de amor andamos todos precisados, em dose tal que nos alegre, nos reumanize, nos corrija, nos dê paciência e esperança, força, capacidade de entender, perdoar, ir para a frente. Amor que seja navio, casa, coisa cintilante, que nos vacine contra o feio, o errado, o triste, o mau, o absurdo e o mais que estamos vivendo ou presenciando.
A ordem, meus manos e desconhecidos meus, é abrir a janela, abrir não, escancará-la, é subir ao terraço como fez o velho que era fraco mas subiu assim mesmo, é correr à rua no rastro da meninada, e ver e ouvir a banda que passa. Viva a música, viva o sopro de amor que a música e banda vem trazendo, Chico Buarque de Hollanda à frente, e que restaura em nós hipotecados palácios em ruínas, jardins pisoteados, cisternas secas, compensando-nos da confiança perdida nos homens e suas promessas, da perda dos sonhos que o desamor puiu e fixou, e que são agora como o paletó roído de traça, a pele escarificada de onde fugiu a beleza, o pó no ar, na falta de ar.

A felicidade geral com que foi recebida essa banda tão simples, tão brasileira e tão antiga na sua tradição lírica, que um rapaz de pouco mais de vinte anos botou na rua, alvoroçando novos e velhos, dá bem a idéia de como andávamos precisando de amor. Pois a banda não vem entoando marchas militares, dobrados de guerra. Não convida a matar o inimigo, ela não tem inimigos, nem a festejar com uma pirâmide de camélias e discursos as conquistas da violência. Esta banda é de amor, prefere rasgar corações, na receita do sábio maestro Anacleto Medeiros, fazendo penetrar neles o fogo que arde sem se ver, o contentamento descontente, a dor que desatina sem doer, abrindo a ferida que dói e não se sente, como explicou um velho e imortal especialista português nessas matérias cordiais.

Meu partido está tomado. Não da ARENA nem do MDB, sou desse partido congregacional e superior às classificações de emergência, que encontra na banda o remédio, a angra, o roteiro, a solução. Ele não obedece a cálculos da conveniência momentânea, não admite cassações nem acomodações para evitá-las, e principalmente não é um partido, mas o desejo, a vontade de compreender pelo amor, e de amar pela compreensão.

Se uma banda sozinha faz a cidade toda se enfeitar e provoca até o aparecimento da lua cheia no céu confuso e soturno, crivado de signos ameaçadores, é porque há uma beleza generosa e solidária na banda, há uma indicação clara para todos os que têm responsabilidade de mandar e os que são mandados, os que estão contando dinheiro e os que não o têm para contar e muito menos para gastar, os espertos e os zangados, os vingadores e os ressentidos, os ambiciosos e todos, mas todos os etcéteras que eu poderia alinhar aqui se dispusesse da página inteira. Coisas de amor são finezas que se oferecem a qualquer um que saiba cultivá-las, distribuí-las, começando por querer que elas floresçam. E não se limitam ao jardinzinho particular de afetos que cobre a área de nossa vida particular: abrange terreno infinito, nas relações humanas, no país como entidade social carente de amor, no universo-mundo onde a voz do Papa soa como uma trompa longínqua, chamando o velho fraco, a mocinha feia, o homem sério, o faroleiro... todos que viram a banda passar, e por uns minutos se sentiram melhores. E se o que era doce acabou, depois que a banda passou, que venha outra banda, Chico, e que nunca uma banda como essa deixe de musicalizar a alma da gente.



Carlos Drummond de Andrade Correio da Manhã, 14/10/66

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Reencontro.

Eu perdi. Não tenho mais inspiração para escrever, vontade de mudar algo, e me vejo no espelho meio embaçada como se aquela que era eu há um ano tivesse ficado no sofá e se encantou com um novo seriado eterno. Porque fugiram- me principalmente as palavras e acabei me deixando no mundo, o qual eu temo. Alem das pessoas que me influenciam de um modo diferenciado do antigo, estou agora retraída e não mais tímida. Me tornei egoista, perdi o tom. Não exercito a mente muito menos o corpo, preciso de uma injeção pra reaver meu animo. Mas me sinto como se não tivesse condição de adquiri- la. Já sei, tive uma linda ideia neste momento, devo me encontrar, com certeza. Já havia tentado obter este encontro antes, mas eu não estava presente. Vou lá, será agora. Somente eu. E a partir de então tudo vai voltar como antes, só que atualmente, um pouco atualizado. Vou me esquecer dos anseios e correr até cair, preciso escutar minhas músicas, quem sabe da vida, andar de bicicleta, ser um pouco menos racional e mais séria. Reler meus textos antigos, muda-los e renovar, ler um pouco e talvez fugir uns tempos, algumas horas de conversa na rua, mesmo que silenciosas, me farão bem. E então pra finalizar vou me lembrar exatamente de como tudo era, e como imaginava que iria ficar. Farei os planos novamente com grande flexibilidade pois agora eu sei que tudo muda, e meu resgate estará completo.